«I’m here, you’re here, where are you ?»
à partir de Oração, de Fernando Arrabal,
de A Ilha dos Mortos, de August Strindberg
Par Bruno Schiappa
Coro – Sussurrando primeiro e intercalando tudo depois. There is a time for everything, and a season for every activity under the heavens: a time to be born and a time to die, a time to plant and a time to uproot, a time to kill and a time to heal, a time to tear down and a time to build, a time to weep and a time to laugh, a time to mourn and a time to dance, a time to scatter stones and a time to gather them, a time to embrace and a time to refrain from embracing, a time to search and a time to give up, a time to keep and a time to throw away, a time to tear and a time to mend, a time to be silent and a time to speak, a time to love and a time to hate, a time for war and a time for peace./Existe um tempo próprio para tudo, e há uma época para cada coisa debaixo do céu: um tempo para nascer e um tempo para morrer; um tempo para plantar e um tempo para colher o que se semeou; um tempo para matar, um tempo para curar as feridas; um tempo para destruir e outro para reconstruir; um tempo para chorar e um tempo para rir; um tempo para se lamentar e outro para dançar de alegria; um tempo para espalhar pedras, um tempo para as juntar; um tempo para abraçar, um tempo para afastar quem se chega a nós; um tempo para andar à procura e outro para perder; um tempo para armazenar e um para distribuir; um tempo para rasgar e outro para coser; um tempo para estar calado e outro tempo para falar; um tempo para amar, um tempo para odiar; um tempo para a guerra, e um tempo para a paz.
Narrador – O cenário representa o quadro A ilha dos Mortos, de Böcklin. Ouve-se primeiro um sussurro, depois, vozes indistintas.
Um casal lê um livro – Creio no Espírito Santo, Senhor que dá a vida, e procede do Pai e do Filho, e com o Pai e o Filho é adorado e glorificado: Ele que falou pelos Profetas. Creio na Igreja una, santa, católica e apostólica. Professo um só batismo Para remissão dos pecados. E espero a ressurreição dos mortos, e vida do mundo que há-de vir. Ámen. Olham um para o outro. Que bonito.
Coro – ESCURIDÃO! Creio em um só Deus, Pai todo-poderoso, Criador do céu e da terra. De todas as coisas visíveis e invisíveis./ I believe in one God, the Father almighty, Creator of heaven and earth. Of all things visible and invisible.
Narrador – Eu remo uma barca. Remo com calma. Devem imaginar e sentir a calma com que eu estou a remar. Conduzindo a barca. Nela levo um Homem que não está a dormir. Pensa que dorme. Não está a sonhar. Pensa que sonha. Eu tenho que o guiar na passagem.
Coro – PROIBIÇÃO! E ele enxugará todas as lágrimas dos vossos olhos e não haverá mais morte, nem pranto, grito, ou dor, porque as primeiras coisas já passaram./ And he will wipe away all tears from your eyes and there will be no more death, no weeping, no cry, no pain, for the first things have passed away.
Narrador – Batendo as palmas. Acorda.
Homem – Ana. Onde estás? Tenho sono. Alguém tocou. Dá-me o pequeno-almoço Ana. Tenho um dia longo pela frente. Tenho que trabalhar para comprar o que as miúdas precisam. Mas é tudo muito difícil. Precisamos de mais um crédito Ana. Mas temos que ter fiadores. O nosso rendimento só não chega. Dá-me os ovos Ana. Mas coze-os bem. Não me dês os ovos crus. Tenho sono. Mas não posso chegar atrasado. Nunca cheguei atrasado. É uma vergonha. Mas tenho muito sono Ana.
Narrador – Ele ainda não se apercebeu de nada. De nada do que se está a passar. Faz uma festa no Homem que se torna a deitar. Pobre filho dos homens. E quando tudo melhorou, ficaram penas e miséria. Se a bebida do esquecimento pudesse e o filtro do sono pudessem surgir na vida do viajante… Mas tudo o que viveu de bom e de mau, de mesquinho e brilhante, vai ter ao soro da memória. Depois separa-se o trigo do joio e deita-se tudo ao vento. E a brisa leva tudo e devolve com nova carga.
Coro – VEÍCULO! Creio em um só Senhor, Jesus Cristo, Filho Unigênito de Deus, nascido do Pai antes de todos os séculos: Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro. Gerado, não criado, consubstancial ao Pai./ I believe in one Lord, Jesus Christ, the only begotten Son of God, born of the Father before all ages: God of God, Light of Light, true God of true God. Generated, not created, consubstantial with the Father.
Narrador – Agora o cenário mudou. Depois de dormir, o Homem acordou numa sala de estilo egípcio. Vocês devem ser capazes de imaginar uma sala, estilo egípcio, toda branca. Como já devem ter percebido, ele está morto. Agora chama-se Assis: o Homem da terra, ou, o Homem que veio da terra. Ele está a corrigir trabalhos dos alunos. Ainda tem um pé lá. Na terra. Para Assis. O que estás a corrigir agora?
Assis – “A vida é sonho”. O trabalho de um dos meus alunos. É um contrassenso.
Narrador – Um sonho pode estar cheio de ensinamentos. Nunca aprendeste nada com um sonho?
Assis – Pensando bem, tens razão.
Narrador – Conta-me um!
Assis – Um dia recebi uma carta anónima. Achei-a pérfida. Rasguei-a e pu-la no cesto dos papéis. Nessa noite sonhei com um desconhecido. Um sábio que estava morto. Pôs-me diante dos olhos uma folha e disse “lê”. Eu li mas vi nada de extraordinário. Então ele levantou a folha contraluz e eu consegui perceber outra escrita. Quando acordei fui ao cesto e reconstruí a carta e quando a reli estava cheia de ensinamentos sábios que influenciaram muito e bem o meu caráter.
Narrador – A vida pode ser um sonho também. Não achas? Um sonho só se torna uma referência se nos lembramos dele. A memória é crucial nesse aspeto. Mas se perdermos a memória somos como um recém-nascido. Temos que começar do princípio e tudo de novo. Vais querer isso?
Assis – Tudo não.
Narrador – A vida é sonho. Uma aparência. Da coisa em si não sabes nada. Só o que te aparece aos olhos e aos ouvidos. Tem mais prudência ao corrigires trabalhos.
CORO – GÉNESIS! Por Ele todas as coisas foram feitas, E por nós, homens, e para nossa salvação desceu dos céus e encarnou pelo Espírito Santo, no seio da Virgem Maria, e Se fez Homem./ By Him all things were made, And for us men, and for our salvation came down from heaven and incarnated by the Holy Spirit in the Virgin Mary, and became Man.
Narrador – Estás pronto para saber quem és? Pode levar-te a sítios amargos. A escola, as lições, a aprendizagem, a educação, o ensino, os exames, duram sempre. Mas tu tentaste ignorar isso. Muitas vezes. Demasiadas vezes.
Assis – Seja.
O narrador bate palmas. Uma mulher e um Homem destacam-se para a frente.
Coro – BIG BROTHER! Também por nós foi crucificado sob Pôncio Pilatos, padeceu e foi sepultado. Ressuscitou ao terceiro dia, conforme as Escrituras, e subiu aos céus, onde está sentado à direita do Pai./ Also by us he was crucified by Pontius Pilate, suffered and was buried. He rose again on the third day, according to the Scriptures, and ascended into heaven, where he sits at the right hand of the Father.
Choro de um recém-nascido. De repente, grito terrível do bébé, seguido imediatamente de silêncio.
Homem – A partir de hoje seremos bons e puros.
Libe – Nós?
Homem – Sim.
Libe – Não vamos conseguir.
Homem – Tens razão. Pausa. Vai ser muito difícil. Pausa. Mas vamos tentar.
Ana – Como?
Homem – Cumprindo a lei de Deus.
Ana – Já a esqueci.
Homem – Eu também.
Ana – Então como fazemos?
Homem – para saber o que é bom e o que é mau?
Ana – Sim.
Homem – Comprei uma bíblia.
Ana – Isso chega?
Homem – Sim, para nós chega.
Ana – Vai ser tudo muito diferente.
Homem – Sim. Muito.
Ana – Lê-me um pouco do livro.
Homem – Da bíblia?
Ana – Sim.
Homem – Lendo. “No princípio Deus criou o céu e a terra.” Entusiasmado. Que bonito!
Ana – Sim, é muito bonito.
Homem – Lendo. “Deus disse “Que haja luz”. E houve luz. Deus viu que a luz era boa e separou a luz das trevas. Deus chamou à luz Dia, e às trevas, Noite. A noite chegou depois da manhã: este foi o primeiro dia.
Ana – Foi assim que tudo começou?
Homem – Sim!
Ana – Lê-me mais um pouco.
Homem – Lendo. “Deus fez o Homem do barro. De seguida espetou-lhe no nariz um espírito da vida e o Homem converteu-se num ser vivo.” Pausa. “Então o Senhor fez com que o Homem dormisse profundamente. Quando estava a dormir tirou-lhe uma costela, o buraco que ficou tapou-o com carne. Com a costela que tinha tirado ao Homem, Deus criou a mulher.”
Homem e Ana beijam-se.
Ana – Inquieta. E podemos dormir juntos como antes?
Homem – Não.
Ana – Então terei que dormir sozinha?
Homem – Sim.
Ana – Vou ter muito frio.
Homem – Habituas-te.
Ana – Assim não discutimos quando ficares com o lençol todo.
Homem – Claro.
Ana – A bondade. É uma coisa tão difícil.
Homem – Sim. Muito difícil.
Ana – Poderei mentir?
Homem – Não.
Ana – E roubar laranjas à mulher da mercearia?
Homem – Também não.
Ana – Não nos podemos ir divertir, como antes, no cemitério?
Homem – Sim. Porque não havíamos de poder?
Ana – E podemos dar murros nos olhos dos mortos, como antes?
Homem – Isso não.
Ana – E matar?
Homem – Não.
Ana – Então vamos deixar que as pessoas fiquem vivas?
Homem – Claro.
Ana – Pior para elas.
Ana – E o que nos vai acontecer depois?
Homem – Vamos para o céu.
Ana – Os dois?
Homem – Sim. Portamo-nos bem os dois.
Ana – E o que faremos no céu?
Homem – Divertimo-nos.
Libe – Sempre?
Homem – Sim. Sempre.
Ana – Incrédula. Não é possível.
Homem – Sim. É possível.
Ana – Porquê?
Homem – Porque Deus é todo-poderoso. Deus faz coisas impossíveis. Milagres.
Ana – Eu no lugar dele faria o mesmo.
Homem – Vê o que diz a bíblia: “A Jesus, Filho de Deus, foi levado um cego para que ele o curasse. Jesus pôs-lhe saliva sobre os olhos e perguntou: “Vês alguma coisa?” O cego, olhando, disse: “Vejo os homens, também vejo árvores como se andassem”. Imediatamente Jesus pôs-lhe de novo as mãos sobre os olhos, o cego viu claramente e foi curado e distinguia perfeitamente ao longe”.
Ana – Que bonito.
Homem – Ele disse que devíamos ser bons.
Ana – Porque te deu esta mania agora?
Homem – Estou farto.
Ana – Só por isso?
Homem – Para além disso o que fazíamos até agora era muito feio.
Ana – E isso do céu o que será?
Homem – É o sítio para onde iremos depois de mortos.
Ana – Tão tarde? Pausa. Não se pode ir antes?
Homem – Não.
Ana – E que faremos no céu?
Homem – Já te disse: divertimo-nos.
Ana – Queria ouvir-te a dizer isso outra vez. Pausa. Parece impossível.
Homem – Seremos como os anjos.
Ana – Como os bons ou como os outros?
Homem – Os outros não estão no céu. Os outros são os demónios e estão no inferno.
Ana – E o que fazem lá?
Homem – Sofrem muito, queimam-se.
Ana – Que exagerados.
Homem – Sim, muito.
Ana – Nós conformamo-nos com muito menos. Olha, quero começar a ser boa agora mesmo.
Homem – Vamos começar agora mesmo.
Ana – Ninguém vai reparar.
Homem – Deus vai reparar.
Ana – Tens a certeza?
Homem – Sim, Deus vê tudo.
Ana – Inclusive quando urino?
Homem – Sim, inclusive.
Ana – A partir de agora vou ter muita vergonha.
Homem – Deus anota com letras de ouro num livro muito bonito as coisas boas que fazes e num livro muito mau e com letra muito feia os pecados.
Ana – Serei boa. Quero que escreva sempre com letras de ouro.
Homem – Não deves ser boa só por isso.
Ana – Então porque mais?
Homem – Por causa da felicidade.
Ana – Mas isso da felicidade existe?
Homem – Sim. Pausa. Dizem que sim.
Ana – Triste. E o que acontece a tudo aquilo que fizemos antes?
Homem – O que fizemos de mal?
Ana – Sim.
Homem – Temos que nos confessar.
Ana – Tudo?
Homem – Sim, tudo.
Ana – Também que tu me despes para que os teus amigos se deitem comigo?
Homem – Sim, isso também.
Narrador – Para Assis. Primeiro vais ficar desiludido contigo. É a maior desilusão que existe.
Ana – Entusiasmada. Quero ser boa.
Homem – Eu também.
Ana – Já a seguir?
Homem – Já a seguir.
Ana – Quero ser como o Menino que nasceu no portal…
Homem – Eu também. Homem dá as mãos a Ana.
Ana – Inquieta. E como passaremos o tempo?
Homem – A fazer coisas boas.
Ana – O tempo todo?
Homem – Bem, quase o tempo todo.
Ana – E no resto do tempo?
Homem – Podemos ir à loja de feras.
Ana – Para ver a coisa do macaco?
Homem – Não. Para ver as galinhas e as pombas.
Ana – E que mais podemos fazer?
Homem – Tocaremos ocarina.
Ana – Ocarina?
Homem – Sim.
Ana – Bem. Não é mau?
Homem – Não. Não creio.
Narrador – Para Assis. Aos poucos vais deixar de te reconhecer. Mas na transição vais sentir horror por te esqueceres de quem foste.
Ana – E como faremos para sermos totalmente bons?
Homem – Verás. Se virmos que alguém fica incomodado com algo que fizemos, pois bem, não a faremos. Se virmos que alguém gostava que fizéssemos algo, pois bem, fá-lo-emos. Se virmos que um pobre velho e paralítico não tem ninguém, pois então iremos visitá-lo.
Ana – Não o matamos?
Homem – Não!
Ana – Pobre velho!
Homem – Mas não vês que matar já não se pode?
Ana – Ah! Continua.
Homem – Se virmos que uma mulher carrega um grande peso, pois pegamos e ajudamo-la. Voz de juiz. Se virmos que se fez uma injustiça, pois pegamos e desfazemo-la.
Ana – Também as injustiças?
Homem – Sim, também.
Ana – Satisfeita. Bem, que importantes que vamos ser.
Homem – Sim, muito.
Ana – Inquieta E como vamos saber que é uma injustiça?
Homem – Calculamos a olho.
Ana – Vai ser aborrecido.
Homem – Vai ser como tudo.
Ana – Vamos acabar por nos aborrecer também.
Narrador – Para Assis. Por último já não te reconheces em quem foste. Mas já não te horroriza. O esquecimento é total. Fizeste um reset. Marcado pela mão do oblivion.
Homem – Vamos tentar.
Ana dá um ovo ao Homem. O Homem cai morto.
Coro – BONDADE! De novo há-de vir em sua glória, para julgar os vivos e os mortos, e o seu reino não terá fim./ He will come again in his glory to judge the living and the dead, and his kingdom will have no end.
Assis fica sentado como um espectador no teatro. Sente-se leve. Vai-se levantando com leveza e calma durante a fala do narrador.
Narrador – O dia sucede à noite. Só nas trevas a luz pode brilhar. De dia, a lua não dá claridade. Mas o sol da meia-noite, ilumina a hora das trevas. O cenário representa, no primeiro plano, uma margem com árvores cobertas com folhas. O vento canta docemente nas árvores e as ondas fazem o seu ruído. Na outra margem, um pomar de laranjeiras em flor e com frutos. Entre as laranjeiras um templo de mármore branco semelhante ao “Templo do Amor” de Trianon. Assis está sentado num banco verde. Parece ter rejuvenescido no seu fato claro. Espero que consigam imaginar isto tudo.
Coro – Eu gemo, gemo, pensando no sangue de tua mãe, o sangue que te deixa louco. A sorte não tem estabilidade nos mortais, tal como a vela de um barco rápido, um deus sacode-a e engolfa-a em terríveis desgraças, fatais, gananciosas, como as ondas do mar./ I moan, I moan, thinking of your mother’s blood, the blood that drives you crazy. Luck has no stability in mortals, just like the sail of a fast boat, a god shakes it and engulfs it in terrible misfortunes, fatal, greedy, like the waves of the sea. Eu estou aqui. Tu estás aqui. Onde estás tu?/I’m here. You’re here. Where are you?
FIM